Cresce e (não) aparece.
Por motivos absolutamente
desnecessários – na medida em que a doença é a mais inútil e estúpida invenção
humana – fiquei retido no passado fim-de-semana em casa. A gripe pode, ainda
assim, ser linda, desde que nos ofereça o seu beijo nas alturas devidas. Desta
vez, foi tragicamente inoportuna. E impediu-me de cumprir uma promessa. Acordei
cheio de dores no corpo no Domingo, tive uma noite incerta de frios e
sobressaltos. Nem me lembro se tomei o pequeno-almoço, apenas de tombar no
sofá, ligar a televisão, ver imagens do Eusébio e perceber. Qual vampiro suguei
tudo o que pude em zapping frenético, e em segredo verti várias lágrimas
redentoras enquanto permanentes arrepios de saudade se espalhavam pelo corpo. A
princesa percebeu e tolerou o meu silêncio, as minhas lágrimas, a minha perda.
Ficar-lhe-ei eternamente grato por isso. Não convivi com Eusébio, apenas me
cruzei com ele em aeroportos aquando de deslocações europeias do Benfica. Numa
dessas vezes, retidos numa porta de embarque por atraso do voo, pedi-lhe um
autógrafo, mas a caneta traiu-me. Reagiu mal o Pantera “então pedes-me um
autógrafo e não tens caneta?”. Não desisti, consegui uma caneta emprestada e
voltei. A custo presenteou-me o autógrafo. Pediram-me desculpa por ele, como se
fosse preciso. Esse dia confirmou apenas o que sempre pensei – os ídolos não se
devem conhecer pessoalmente, devem estar sempre acima, lá bem em cima. É muito
injusto termos de ficar a saber que podem ser frágeis, angustiados, humanos. No
Domingo dois amigos disseram-me ao telefone “nunca fiquei assim por causa da
morte de uma pessoa que não conheço”. Percebi o que queriam dizer. Somos, os
das nossas gerações, filhos dos amores entre uma ideia “Benfica” e uma divindade
“Eusébio” e tememos a orfandade. E pressinto que nos sentiremos eternamente
sozinhos, mesmo no meio de rubras multidões em dias de procissão,
sentir-nos-emos abandonados e traídos. Neste ponto, também para “aligeirar”, seria
talvez agradável explicar o título desta suave expiação, por contraponto à
crescente vontade de rasgar-me em gritos e impropérios contra a desfaçatez da
lenda – devia saber que não podia ter morrido. O facto de estar a tomar
antibióticos e não beber álcool desde sexta-feira também não me ajuda a
extravasar como necessito. Bem, voltemos ao título, sei que a única leitora
deste blog, que por acaso é linda de morrer e a pessoa mais inteligente e doce
que conheço, está curiosa. Há nestas ocasiões muito mediáticas, especialmente
quando envolvem a morte, interessantes dados para estudos sociológicos. Não há
necessidade de a querida leitora se alarmar, não tenho disponibilidade e
sobretudo conhecimento para realizar tais – espaço para procurar no Google um
sinónimo de estudo – ensaios (gosto da palavra). Cedo foram chegando
profissionais da piscadela ao ecrã, especialistas do comentário breve, para
prestarem homenagem ao King. Não tenho a pretensão de julgar a honestidade e
espontaneidade de tais gestos. Aliás, confesso que só a atrás referida malfadada
gripe me impediu de os acompanhar. Mas fico triste com certas encenações,
teatrinhos de chico-espertices que fatalmente aparecem nestas alturas. E dos
quais – repito - apenas não fiz parte por motivos alheios à vontade. Sim, tive
todas as ganas de chorar em directo, de falar da “boa pessoa, espectacular
pessoa, simples, honesta, humilde”, mesmo não a tendo conhecido e sabendo das
fragilidades de todos os humanos. E de mais tarde, talvez num dos derradeiros
jantares de amigos ou no ocaso entre família poder dizer “eu estive lá”. É esta
transformação da dor alheia em crédito pessoal que me choca. A mim, que a
primeira coisa que fiz foi procurar o tal livro com o autógrafo do Rei. Ou
lembrar a sessão de cinema no São Jorge do passado mês de Março. Estava com a
princesa a aguardar o início do documentário sobre o trágico acidente aéreo que
vitimou toda a equipa do Torino após deslocação a Lisboa para um jogo amigável com
o Benfica, quando toda a sala se levantou e ovacionou a entrada de
Eusébio. Senti um daqueles inexplicáveis arrepios, maiores que mil palavras ou
honras, que nunca esquecerei. E partilhei a saudação, dei-a e recebi-a por e
com ele. Nestes últimos dias vi imagens e ouvi palavras lindas, mas não deixo
de lamentar o aproveitamento mediático, até de amigos, “ah e tal, eu é que
soube primeiro da notícia, ah e tal, eu é que….”. Não havia necessidade. Temos
de crescer enquanto sociedade e (não) aparecer sempre que nos põem “cenouras” à
frente. E deixar de invejar o mérito – mas este é outro assunto. No final do
dia, a melhor frase que escutei foi a do Padre Vítor Melícias “Honra e Glória
para Eusébio”. Honra e glória!