quarta-feira, 31 de agosto de 2016

História do carrinho voador.

Há dias recebi, já de noite, um telefonema de uma mulher, embaraçada, que me disse ter em sua posse o carrinho de bebés que eu havia perdido nessa tarde. Acordámos encontro para a manhã seguinte, devolveu-me o carrinho, entre lágrimas de remorso por ter cedido à tentação de levar um objecto junto a uma escola que sabia pertencer a outrem. Aceitei as suas sentidas desculpas. Partilhámos então um café, ambos felizes, ela pela redenção, eu pelo seu gesto. Tudo se passou numa vila imaginária chamada Utopialândia, nos limites da grande metrópole Nova Esperança.
Depois acordei e deparei-me com uma das mais infames condições do ser humano, a pobreza de espírito, a degradação e insensibilidade que nos caracteriza cada vez mais. A história universal é clara, embora com diversas e possíveis interpretações, mostra-nos sempre que o nosso lado mau supera estrondosamente o bom. Só assim é possível compreender o incompreensível, as guerras, os Gulags, Auschwitz, a exploração social, sexual, a pedofilia, a escravidão. Sempre o lado mau a esmagar os rasgos de humanidade que, ingenuamente acredito, ainda mantemos. Se em situações extremas, como a fome, acções extremas são toleráveis, neste momento, no nosso país, no estado civilizacional em que julgava estarmos, o que se passou naqueles dias de Julho não se justifica à luz de qualquer racionalidade.
Há dias fui buscar os gémeos à escola, depois de por os ovos com os bebés no carro, prender-lhes o cinto e pousar a mochila, arranquei, deixando o carrinho no passeio. Assim que dei conta, voltei e apenas encontrei o passeio. Dirigi-me a casa, deixei os gémeos, entretanto a mãe voltou e pude sair de novo. Indaguei várias pessoas sem sucesso, até que uma senhora, numa rua próxima da escola, me disse que tinha visto duas mulheres passarem em frente da sua loja com a armação de uma carrinho, o que lhe pareceu obviamente estranho. Viu-as dirigirem-se para determinado bairro próximo. Passei esse e o dia seguinte a colar cartazes, oferecendo uma recompensa a quem me devolvesse o carrinho.
Três dias depois, recebi um telefonema imoral, tenebroso, indecente. A mulher mentiu em catadupa, tentado explorar ao máximo a nossa fraqueza. Resisti até onde pude, talvez devesse ter resistido mais, até ter sido mais contundente, mas não, já aprendi há muito que a pobreza de espírito e a ignorância são inimigos impossíveis de vencer.
A todos os que ao verem um carrinho perdido num passeio em frente a uma creche o devolveriam, o meu respeito, a minha admiração.
Aos ladrões e chantagistas, sei que contribui para menos um par de ressacas, e sei também que dormiram descansados. Pois bem, que se recuperem ou então encontrem uma dose pura e durmam o sono dos justos.